Alquimia Musical: Hermetismo e MPB (parte 1)

Vou começar dizendo que se você acha incrível que Heilung[1] (Alemanha, 2014) e Zeal & Ardor[2] (Suíça, 2013) façam músicas com temática mística, então continua lendo para descobrir como aqui, ainda nos anos 70, a alquimia resultou em uma música popular brasileira de altíssima qualidade.


Como eu disse, os anos 70 foram ótimos para os magistas tupiniquins, aqueles brasileiros não-tradicionais (e comumente marginais, no sentido de à margem da sociedade). O complexo Raul Seixas lançou “Gîtâ[3] em 1974, e dizia já na faixa-título que ele era “feito da terra, do fogo, da água e do ar”. Já o porra-louca “Paêbirú[4] de Lula Côrtes e Zé Ramalho foi lançado em 1975, e era dividido em quatro partes, cada uma sobre os elementos da força telúrica.

Mas hoje quero falar do disco “A Tábua de Esmeralda” de Jorge Ben (1974), e que viria a ser considerado o melhor disco da carreira dele. Mas antes, é preciso contexto.

Ditadura, Censura e Dissimulação

O ano era 1974, o General Médici tinha assumido o “governo” do Brasil em 1969, a censura estava agora institucionalizada e a ditadura militar ainda demoraria uns 10 anos para ser desmantelada. Nos últimos anos, Geraldo Vandré havia ganho o Festival da Canção, em 1968, com “Pra não dizer que não falei das flores“, que mais tarde viria a se tornar o hino de resistência do movimento civil/estudantil que fazia oposição à ditadura. “Aquele Abraço” do Gilberto Gil fora composta em 1969, logo quando ele ficou sabendo da confirmação de seu exílio. Em 1970, Paulinho da Viola havia lançado “Sinal fechado“, hoje considerada por muitos uma síntese do clima da época.

Curiosamente, estamos falando de um momento de repressão total, mas que acabou proporcionando o lançamento de algumas das mais preciosas canções e discos brasileiros. Tudo feito na base da dissimulação! Ou você era um artista como Chico Buarque, Aldir Blanc e João Bosco, que compunha canções recheadas de metáforas criticando o (des)governo, ou você era um artista que não tinha medo nenhum de falar aberta e negativamente sobre a ditadura (e acabava preso e/ou torturado e/ou exilado e/ou “auto-suicidado”).

Existia ainda uma terceira opção: você podia ser um artista que não estava muito a fim de se meter nessa briga, talvez porque estivesse cansado de ser (mais) marginalizado. Bom, esse último caso aí, era o caso do Jorge Ben e do Tim Maia (de quem vou falar na segunda parte deste texto). Ao invés de ficarem correndo o risco de levar um AI-5 na cara, eles decidiram estudar, explorar e musicalizar suas experiências pagãs, e acabaram criando a “alquimia musical brasileira.”

O monocórdio celestial, ilustração do livro “Anatomiae Amphitheatrum“, 1623, de Robert Fludd, filósofo hermético seguidor de Paracelso. Clique na imagem para acessar um paper sobre o assunto.

A Tábua de Esmeralda” – Jorge Ben e Hermes Trismegisto

Até hoje considerado um dos melhores discos de Ben Jor, “Tábua” tem o hermetismo como um dos temas principais, além de novos arranjos com efeitos especiais completando o climinha cósmico. A verdade é que, desde a adolescência, Ben Jor fora um estudioso do esoterismo. A partir disso, conheceu as leis herméticas e decidiu fazer música para falar sobre elas. Nos anos 70, o músico já estudava filosofia e teologia, e estava imerso na obra de Tomás de Aquino.

Com toda essa bagagem mística – e já tendo lançado clássicos como “País Tropical“, “Fio Maravilha” e “Taj Mahal” – Jorge buscava uma filosofia para sua música. Mas tinha que ser uma que não o forçasse a abandonar suas raízes do samba-rock. Para isso, ele pensou em propagar seu conhecimento mágico, gravando sobre mistérios antiquíssimos: anunciando que os alquimistas estariam chegando, fazendo menções a possíveis deuses astronautas, falando sobre o ocultista Paracelso[5] e, claro, a dita Tábua de Esmeralda do título.

Das 12 faixas do LP, pelo menos 5 falam diretamente sobre alquimia e vou focar nelas. A capa, traz os misteriosos símbolos alquímicos encontrados na tumba de Nicolas Flamel[6] na Igreja dos Santos Inocentes em Paris.

Você pode comprar o livro sobre o disco pela Editora Cabogó.

Lado A – Faixa 1: Os Alquimistas Estão Chegando Os Alquimistas

A letra da canção revela a natureza dos alquimistas: como haviam sido tachados de bruxos e feiticeiros, eram amplamente perseguidos, assim, eram obrigados a se disfarçar, usar nomes falsos, se esconder, escrever de maneira enigmática, fazendo com que fossem “discretos e silenciosos” e, por isso, “moram bem longe dos homens”.

Além disso, para realizar qualquer processo alquímico, tinha que se esperar condições favoráveis, ou que determinado planeta estivesse em harmonia, ou seja, os alquimistas “escolhem com carinho a hora e o tempo / do seu precioso trabalho”, tornando-se, portanto, “pacientes, assíduos e perseverantes”.

Importante ressaltar que também “Executam segundo as regras herméticas” aqueles processos químicos que vão “Desde a trituração, a fixação / A destilação e a coagulação”, então precisavam conhecer as leis cósmicas da Filosofia hermética para poder lidar com as diversas matérias, na intenção de transmutar.

Em resumo, é aquele tipo de música “religiosa” que todo músico deseja produzir: uma letra tão simples e acessível, que a pessoa cantarola sem nem perceber o assunto. Além de descrever o dia-a-dia do ocultista, quando Jorge fala que os alquimistas estão chegando, está sugerindo que essa transmutação alquímica seja uma metáfora sobre a mudança da consciência do homem, transformando ignorância em sabedoria. 

Lado A – Faixa 2: “O Homem da Gravata Florida

Aqui, Jorge Ben segue unindo os elementos musicais ao culto alquímico, ao “elogiar” um famoso químico, ocultista e botânico. Paracelso[5] que, segundo relatos, costumava visitar seus pacientes com uma echarpe colorida, ganhou sua homenagem em uma canção bem-humorada e cheia de ritmo, com toques de psicodelia. Há ainda mais uma referência ao botânico, na faixa “Eu vou torcer”, onde Jorge Ben diz que vai torcer pela agricultura celeste (e por São Tomás de Aquino).

Selo alemão de 1993 em homenagem a Paracelso.

A canção é curtinha, mas expõe a real admiração de Ben Jor pelo alquimista. Mais tarde, em uma entrevista, quando perguntam se o homem da gravata florida era realmente Paracelso, o músico respondeu “É! A história dele é maravilhosa também. […] O pai dele era famoso, médico, aquele médico que mexe com as plantas. Ele herdou do pai isso, todo o conhecimento dessa medicina, que se chama agricultura celeste.

Lado A – Faixa 3: “Errare Humanum Est”

Errar é humano, mas perseverar no erro é diabólico“, uma das muitas frases atribuídas a Santo Agostinho. Daí vem o título da terceira faixa deste LP! Já o conteúdo, é praticamente uma psicodelia espacial, repleto de efeitos que relembram os filmes blockbuster de exploração intergaláctica. E Jorge Ben canta como se realmente estivesse lá fora, na atmosfera, “revelando” o interesse dos alquimistas pelo conhecimento das estrelas.

Acontece que, quatro anos antes desse disco ser lançado, o suíço Erich Von Däniken lançou o livro Eram os Deuses Astronautas?. O escritor ficou famoso por defender que alienígenas poderiam ter influenciado a vida terrestre, argumentando que alguns elementos místicos de civilizações antigas poderiam ter sido produzidos por seres de outros planetas.

Jorge Ben deve ter lido a série Enigmas do Universo da Editora Melhoramentos (1971) porque chega a questionar nossa fixação em entender esses enigmas quando canta “Tem uns dias / Que eu acordo / Pensando e querendo saber / De onde vem / O nosso impulso / De sondar o espaço.”

Erich Von Däniken volta como referência na canção “Magnólia“, quando a personagem retratada “[…] já se encontra a caminho / Voando numa nave maternal dourada / Linda e veloz feita de um metal miraculoso”, assim como Orjana, a moça que Däniken relata quando discorre sobre a lenda da cidade de Tiahuanaco e a Porta do Sol: “[A lenda] menciona uma espaçonave dourada, procedente das estrelas; nela veio uma mulher, Orjana era seu nome, para cumprir a missão de tornar-se mãe primeva da Terra.

Lado B – Faixa 4: “O Namorado da Viúva”

Definitivamente, essa é a minha canção favorita deste álbum! Além do climinha engraçadinho por trás dela, Ben Jor conseguiu transformar uma aula de história em samba-rock, rs.

A quarta faixa desse LP conta a curiosa história de amor entre o famoso alquimista Nicolas Flamel[6] e Dame Perenelle, conhecida pelo seu “[…] dote / Físico e financeiro invejável.” O problema era que ela já havia sido viúva três vezes, antes de namorar Flamel. E daí surgia a dúvida “Que viúva é essa? / Que todos querem mas têm medo / Têm receio de ser dono dela.” Então, quando Nicolas assumiu o namoro com a bela dama, corria um boato de que “[…] as apostas subiram dizendo que ele / Não vai dar conta do recado“, daí entendemos porque o Namorado da Viúva andava “Apressado, pensativo, desconfiado / Olhando prá todos os lados.”

Jorge Ben reconta a história como se a tivesse vivido, fazendo algo parecido ao que havia sido feito com a figura de Paracelso, descreve um homem caricato e graceja dele. O que o músico esqueceu de incluir na contação, é que há uma lenda de que Flamel e Perenelle não morreram, pois tomaram o elixir da vida longa, que ele descobriu!

Pois muito que bem: conta a lenda, que após encontrar um antigo livro cheio de desenhos enigmáticos, Flamel teria o mandado traduzir e, ao descobrir a Cabala e a Alquimia, teria se dedicado à produção da Pedra Filosofal, cuja fórmula estaria no livro (junto com os ensinamentos para transmutação de matéria em prata e também em ouro, o que teria multiplicado a riqueza da Viúva, rs). Daí, passou a fazer inúmeras obras de caridade (hospitais, abrigos, igrejas, cemitérios) e fazia questão de decorar os locais com símbolos alquímicos e muito ouro.

Além de dar uma voltinha por Hogwarts, Flamel tabém teria sido visto, acompanhado de sua Senhora, em um teatro assistindo à Ópera, anos depois de suas mortes:

Lado B – Faixa 5: “Hermes Trimegisto e sua Celeste Tábua de Esmeralda”

Aqui, fica mais claro o envolvimento de Jorge Ben com os ensinamentos da alquimia. A faixa retoma o assunto do início do álbum e é uma ótima explicação sobre os preceitos básicos da Tábua da Esmeralda, feita de maneira muito leve e quase despreocupada. Mesmo porque o artista “apenas” musicou o texto retirado diretamente da Tabula Smaragdina, atribuída a Hermes Trismegisto. Sobre esse objeto, a escritora, filósofa e fundadora da Sociedade Teosófica Helena Blavatsky (1831 – 1891) disse:

“[A Tábua] expressa, em poucas frases, a essência da sabedoria hermética. Para quem a lê apenas com seus olhos corporais, os seus preceitos não sugerem nada novo ou extraordinário, porque ela começa simplesmente afirmando que sua mensagem não fala de coisas fictícias, mas daquilo que é verdadeiro e seguro.”

BLAVARSKY, Helena.

Esse objeto seria um dos mais antigos documentos alquímicos! Dizem que foi encontrada em uma caverna, escrita em uma placa de esmeralda, e estava nas mãos do cadáver de Hermes Trismegisto. Aliás, o músico buscou a “melhor” versão da tradução da placa, escrita pelo alquímico Fulcanelli (a quem Jorge deu os devidos créditos de “compositor”), e fez poucas variações para não tirar a beleza do texto. Jorge falou a um jornal[7], na época do lançamento do disco:

“Tenho muito respeito e admiração pelo trabalho de um alquimista, pois ele dedica toda a sua vida a estudar e procurar com uma fé e perseverança não comparável a coisa alguma. Desde o LP As Rosas Eram Todas Amarelas já há o reflexo do estudo e da tentativa de aplicar tudo isto à minha música. Pessoalmente houve uma grande mudança em minha vida e eu me sinto profundamente satisfeito comigo mesmo.

BEN JOR, Jorge. Em entrevista a Aramis Millarch, publicada originalmente no O Estado do Paraná, em 9 de junho de 1974.

Essa primeira parte vai ficando por aqui, mas a grande motivação para escrever sobre esse disco foi o sábio conselho de Jorge Ben Jor, proferido nessa mesma entrevista. Ocultismo requer compreensão, sentimento e bem estar.

“Os textos alquímicos são complicadíssimos, mas eu os vou interpretando de acordo com a minha compreensão, sentimento e bem estar”. 

BEN JOR, Jorge.

Confira o álbum “A Tábua de Esmeralda” de Jorge Ben, no YouTube:

[1]Heilung é uma banda de música folclórica baseada em textos e inscrições rúnicas de povos germânicos da Idade do Bronze, Idade do Ferro e Era Viking. Fonte: Wikipédia.
[2]Zeal & Ardor é uma banda que mistura sons de spirituals afro-americanos com black metal. Fonte: Wikipédia.
[3]Junto com Paulo Coelho, Raul Seixa compôs "Gîtâ" (inspirado no Bhagavad Gita, livro sagrado hindu), "Sociedade Alternativa" (inspirada na obra de Aleister Crowley), "Trem das Sete" e "Loteria da Babilônia" (que também falam sobre Crowley). Fonte: Wikipédia.
[4]O selo goiano Monstro Discos liberou o documentário "Nas Paredes da Pedra Encantada" que conta a história por trás do mítico álbum, inspirado em uma viagem - alucinógena, com cogumelos - até a Pedra do Ingá. Veja no YouTube.
[5]Paracelso, pseudônimo de Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, foi um médico, alquimista, físico, astrólogo e ocultista suíço-alemão. Fonte: Wikipédia.
[6]Em 1364, Nicolas Flamel se casou com Dame Pernelle, a viúva. Quando conseguiu estabilidade com sua livraria, passou a estudar alquimia como um passatempo. Com o tempo, se tornaram famosos por sua filantropia, e também pelas suas contribuições à alquimia. Fonte: Biblioteca Hermética.
[7]Fonte: Tabloide Digital, 35 anos de Jornalismo sob a ótica de Aramis Millard.

3 thoughts on “Alquimia Musical: Hermetismo e MPB (parte 1)

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  1. Que maravilhoso!
    Eu adoro conhecer sobre essas músicas com temática mística. Lembro que fiquei muito chocada quando descobri que o The Chemical Wedding do Bruce Dickison é sobre Hermetismo.

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  2. Que delicinha de texto! Coloquei pra tocar aqui no meu radinho (no caso no youtube mesmo rsrs) O bom de não se saber de tudo é que sempre estou descobrindo coisas novas

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